Já começava a ter algumas saudades da chuva. Pelo menos no outro dia senti, naqueles quarenta graus à sombra. Eu era o único ser humano que se tinha atrevido a sair do covil personalizado a que normalmente os outros primatas que convivem comigo chamam a minha casa. E lá estava eu, arrastando-me por entre as sombras que podia, tentando não ser atropelado no alcatrão escaldante.
Claro que chegou a altura em que a sombra acabou. Nem árvores, arbustos, muros ou casas. Nem sequer a mísera sombra de um poste telefónico. Foi aí que comecei a perceber o significado real da palavra «nenhures». Bem, enquanto o meu corpo assava e se arrastava pelos quilómetros da mistura entre o alcatrão e a terra batida, comecei obviamente a delirar.
Vi passar a volta a França em pleno alto Alentejo e atrás deles pastores transmontanos a passear rebanhos de jacarés paranaenses.
Água...era tudo em que eu pensava...uma mísera, escondida gotinha de água.
Comecei a revirar pedras em busca de um qualquer vestígio de humidade, mas só consegui estragar o encontro de dois bichos-da-conta.
Por entre o meu delírio do meio dia, vi a coisa mais impossível de todas. Um polvo! Um polvo a arrastar-se por uma estrada de lado de nenhum com destino a vá-se lá saber onde...
Escusado será dizer que os meus pobres neurónios não estranharam a presença do cefalópode em tão recôndito e pitoresco sítio para um bicho daqueles. Assim, mal ele se chegou mais perto, meti conversa com ele.
-Hei! Oh, anda cá pá! Que é que um polvo como tu anda por aqui a fazer?
-Eu? Arrasto-me, ora essa. Pensei que fosse óbvio.
-Aaaah.....essa parte é...quer dizer...mas o que é que te trás por cá?
-Podia perguntar-te o mesmo. Pensei que os seres humanos vivessem todos em centros comerciais.
-Não! Que disparate! Alguns de nós ainda têm vidas e ainda se dão ao luxo de passear por aí. É isso que está a fazer?
-Não. Já disse que estou só a arrastar-me.
-E tens um nome ou coisa que valha por isso?
-Há quem me chame só Paul, mas o meu nome é mesmo Paulô.
-Paulô? Quase como se fosse em brasileiro?
-Não, Santa Mãe... Só Paulô.
-Então és Paulô, o polvo?
-Sim, sim, faço por isso...
Conversámos durante algum tempo, desidratando juntos, como companheiros. Falámos de política e de estilos de vida e chegámos à conclusão de que tínhamos opiniões bastante diferentes. Ele disse-me que aceitava tudo e todos, que era o mais liberal de todos os polvos! Até me chamou fascista pelo simples facto de saber o hino nacional do meu país... Proclamou liberdade para todos, igualdade e uma fraternidade conjunta com a Humanidade.
A meio da conversa passou por nós uma carrinha a fazer campanha ao CDS. Começa logo o polvo:
-Filhos da lula... só sabem é mandar vir! Vãos mas é para a vossa terra! Golfinhos!!!!
-Então, oh Polvo, que é feito dessa tolerância que 'tavas a apregoar?
-Ah, ficou na gaveta só um bocadinho...
Então percebi que o Paulô me tinha mentido. E que como polvo que era iria tentar meter o tentáculo em tudo o que conseguisse. Levantei-me e fui buscar uma pedra. Atirei-lha com força. Ele ainda protestou. mas à 3a já nem falava. Fiquei contente, porque vistas as coisas, os polvos não podem viver muito tempo em terra, nem podem muito quando uma pedra dura lhes é atirada à cabeça.
Virei costas ao cadáver do meu falecido companheiro sem quaisquer remorsos, porque afinal de contas um polvo, por muitos tentáculos que tenha, nada pode contra um verdadeiro calhau.
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Estou... ora deixa cá ver a palavra certa... Chocada.
ResponderEliminarÉ isso.
Chocada.